Carlos Franco, da revista EXAME
Humorista dos mais queridos por crianças e adultos nas décadas de 70 e 80, o ator e músico Antônio Carlos Bernardes Gomes dificilmente faria sucesso nos dias atuais. Bernardes encarnava o trapalhão Mussum, um simpático sambista que fazia rir com suas piadas, trejeitos e gírias como “cacildis”, “forévis” e “mé”, a forma quase carinhosa como ele se referia à cachaça. Há cerca de 30 anos, as brincadeiras de Mussum, mesmo as que envolviam o “mé”, eram vistas apenas como o que realmente eram: brincadeiras. Hoje, diante do surgimento de uma patrulha moralista que tenta barrar propagandas e quadros de humor que lancem mão de situações engraçadas do cotidiano, sob o pretexto de proteger a família, as mulheres, as crianças, os homens e as minorias mais variadas, as referências à bebida feitas pelo comediante seriam certamente apontadas como apologia ao alcoolismo.
Nos dias de hoje, Bernardes correria um grande risco de nunca se tornar um Mussum. Felizmente, para ele e para quem o assistiu, a época era outra e até hoje o humorista é lembrado como um camarada engraçado e boa gente, e não como um bebum mau-caráter. Outros atores, modelos, roteiristas e publicitários, contudo, não tiveram a mesma sorte. Vivem em um momento em que há riscos de ser processados pela sociedade protetora dos animais caso façam piadas envolvendo papagaios. Recentemente, a modelo mais famosa e bem paga do mundo, a gaúcha Gisele Bündchen, tornou-se alvo da patrulha politicamente correta. A campanha que estrela para a marca de lingerie Hope foi acusada de denegrir a imagem da mulher.
Nos filmes da campanha, Gisele aparece conversando com um marido imaginário e dá notícias desagradáveis, como a batida do carro, o estouro do cartão de crédito e a chegada da sogra (dele) para morar com o casal, sempre em duas versões. Em uma delas, a modelo aparece vestida de forma simples e surge a legenda: “errado”. Na outra, Gisele se exibe de calcinha e sutiã da Hope. Nesta, a legenda é: “certo”, referindo-se à melhor forma dedar notícias ruins. Para finalizar, a campanha criada pela agência Giovanni+DraftFCB usa o slogan “Você é brasileira, use seu charme”.
Há uma pitada de machismo na peça? Claro que sim — como em piadas que contamos a amigos e amigas. Na época em que Mussum fez sucesso com a criançada, esse seria apenas mais um filme de 30 segundos exibido antes de recomeçar o programa de TV. Hoje, transformou-se em tema polêmico e virou assunto para a Presidência da República. Mais precisamente para a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República. Indignada com o que viu, a secretária Iriny Lopes, que tem status de ministra, enviou ofício ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e ao anunciante pedindo a suspensão dos comerciais alegando que “expõem a mulher a situação preconceituosa, tratada como objeto”. A ministra já havia feito o mesmo com campanhas da cerveja Devassa e apoiado outras ações do tipo.
O caso da Hope soma-se a uma série de outros que foram vítima da onda politicamente correta que vem tentando restringir a criatividade na publicidade. “Os pedidos de suspensão de campanhas, inclusive por parte do governo, aumentaram consideravelmente nos últimos anos”, diz Gilberto Leifert, presidente do Conar. Empresas como Brahma, Bombril, Nissan, Postos Ipiranga, Schincariol, Pepsico e C&A, entre outras, já tiveram de se explicar depois de ser acusadas de desrespeitar a família, incitar o sexo entre os jovens, subvalorizar as mulheres, promover o preconceito e até incentivar o maltrato das sogras, como na campanha da Peugeot que sugeria ao dono de um carro 1.0 da concorrência com dificuldades em subir uma ladeira que trocasse de marca ou empurrasse a mãe de sua mulher para fora do veículo.
“A propaganda corre o risco de ficar chata e o consumidor de ficar pouco crítico com esse excesso de zelo”, diz Benjamin Yung, responsável pela criação da campanha da Hope com Gisele Bündchen. As limitações à criatividade na propaganda são um risco para os negócios em geral. A publicidade é uma das principais ferramentas para que novas marcas e produtos possam competir com concorrentes tradicionais já estabelecidos.
Sem poder explorar todos os recursos disponíveis de marketing, sempre respeitando os limites da legalidade, dificilmente uma cerveja como a Nova Schin teria feito o sucesso que fez anos atrás, passando de pouco mais de 8% de participação de mercado para 14%, chegando a incomodar a líder Ambev. “Esse movimento é perigoso porque toda censura é burra, e burra ficará a propaganda que seguir as regras do politicamente correto”, afirma José Roberto Whitaker Penteado, presidente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). A patrulha moralista, no entanto, já está mirando mais longe.
No início de outubro, a desconhecida Secretaria da Mulher do Sindicato dos Metroviários de São Paulo pediu à Rede Globo que fosse retirado do ar um quadro do programa Zorra Total, em que uma personagem transexual e sua amiga tratam de amenidades dentro de um vagão de metrô e, vez ou outra, são bolinadas (como ocorre com frequência nos trens lotados Brasil afora). O sindicato, apoiado pela ministra Iriny Lopes, diz que o quadro incita o assédio sexual nos trens. A Globo rejeitou o pedido. É evidente que campanhas publicitárias, programas de televisão e qualquer tipo de manifestação pública precisam se pautar pelos limites do bom-senso. Hoje em dia, felizmente, citações racistas, como muitas vezes vistas no próprio Trapalhões há 30 anos, não são admitidas.
Produtos de venda restrita, como remédios, cigarros e bebidas alcoólicas, já têm regras próprias de regulamentação publicitária. Declarações preconceituosas, mal-educadas e sem sentido não devem ser toleradas — a rejeição, normalmente, vem do próprio público, que usa a censura do controle remoto. Mas não se pode caminhar para o extremo oposto. A solução não está em ofícios do governo ou de entidades que tentam assumir a proteção dos valores morais. “Há um exagero nas reações contrárias à publicidade”, afirma a psicóloga Sandra Cavasini, da Escola Paulista de Medicina. “O consumidor sabe escolher entre o que é ou não aceitável.”
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